Sobras que valem uma obra
A reciclagem de entulho na construção civil pode dar bons resultados técnicos e financeiros, mas as construtoras ainda não apostam na idéia
Medida constantemente defendida por ambientalistas, a reciclagem está prestes a se tornar opção tecnológica e até financeira dentro do processo construtivo. Diversas ações do poder público e de entidades empresariais já buscam regulamentar e induzir o processamento do entulho e a reutilização do material. Dessa forma, seria possível implantar uma cadeia produtiva para o reaproveitamento do material, inclusive com o desenvolvimento de métodos de controle tecnológico.
As iniciativas vêm sendo motivadas pelo panorama atual da destinação de resíduos. Cálculos da Prefeitura de São Paulo mostram que a massa de entulho gerada na cidade é duas vezes maior que a de lixo doméstico. "Até hoje, o resíduo de construção recebeu pouca atenção porque incomoda menos a sociedade que o doméstico, por ter supostamente pouca toxicidade e não cheirar mal", afirma o vice-diretor da Poli-USP Vahan Agopyan. "Mas isso é um erro, pois o entulho não é biodegradável, entope rios e córregos, gera muito pó e possui, no caso de muitas tintas, chumbo, que é uma substância tóxica", acrescenta. De acordo com as experiências e estudos já feitos, praticamente todo o resíduo de construção pode ser processado, desde que respeitadas as recomendações para o processo de separação e processamento.
No mundo, o país com melhor índice de reaproveitamento de material é a Holanda, com índice perto de 80%. "Serve mais como modelo de filosofia, não como referência prática", afirma o engenheiro Mário William Ésper, da ABCP (Associação Brasileira de Cimento Portland). "A falta de recursos naturais lá é tão grande que eles importam areia da Sibéria e entulho da Inglaterra." Para o Brasil, o objetivo é evoluir aos poucos, mas aproveitar parte dos 5% de material que é desperdiçado em média nas construções daqui seria um ponto de partida.
O primeiro passo é fazer a separação dos resíduos, se possível, dentro do canteiro. "A mão-de-obra nem precisaria ser alterada, pois, na média, haveria necessidade apenas de dois funcionários para organizar o entulho, o que já é mais ou menos feito", afirma Salomon Mony Levy, coordenador do CT 206 do Ibracon, referente à proteção ao meio ambiente. Os resíduos devem ser separados em madeira, metais, materiais cimentícios, cerâmicos, plásticos e outros. "É fácil separar, até porque a geração do entulho já ocorre normalmente de forma separada", afirma Agopyan. "Se você está mexendo com argamassa, só pode ser gerado entulho cimentício; se está no setor de marcenaria, o entulho só será de madeira", exemplifica.
In loco
O único material que pode ser reaproveitado na própria obra é o de origem mineral (cimentício e cerâmico). Os demais devem ser encaminhados para indústrias. A partir da geração e coleta, na reciclagem em obra o entulho mineral é encaminhado por dutos a uma minicentral de processamento, onde é triturado para ser normalmente utilizado como agregado.
Como a reciclagem dentro da obra tem menos abrangência e volume, não exige equipamentos sofisticados. Em geral, pode ser utilizado um moinho de rolo pra triturar o entulho. "Se for feito um planejamento para a destinação do entulho, sempre é possível fazer a reciclagem dentro do canteiro", afirma Tarcísio de Paula Pinto, consultor de gestão de resíduos da construção.
A principal vantagem de processar e reaproveitar os resíduos no próprio canteiro onde foram gerados é financeira. O fato de a construtora não ter de se desfazer de um material pelo qual já pagou e o custo reduzido no transporte dos resíduos são os maiores motivos. "Se o processamento for feito no canteiro, há uma redução no volume de entulho por tonelada", afirma Élcio Careli, diretor da Obra Limpa. "Como diminuem os vazios na caçamba, 1 m³ de entulho bruto pesa cerca de 1,2 t, enquanto que o mesmo volume britado contém 1,5 t", calcula. Esse fato reduziria o gasto das construtoras com a remoção do entulho, caso haja necessidade de reaproveitá-lo em outra obra.
Por causa da menor homogeneidade do material processado, recomenda-se o reaproveitamento como agregado para revestimento ou argamassa de assentamento.
Um caso à parte na reciclagem é o de demolições, em que os diversos materiais empregados na execução da obra resultaram misturados, dificultando a segregação do entulho. Para esses casos, recomenda-se uma desmontagem seletiva da edificação. "Hoje, é um processo economicamente pouco viável", afirma Pinto. "Mas, com a mudança de regulamentação e mentalidade, pode se tornar a única alternativa possível." Para essas situações, é recomendável a prévia análise do projeto do edifício e a planificação do desmonte.
Como se estima que apenas 20% a 25% dos resíduos sejam gerados pelas construtoras (o resto seria de responsabilidade de obras de autoconstrução), a reciclagem no canteiro não teria impacto muito significativo nos problemas urbanos causados pelo entulho. "Por esse ponto de vista, a reciclagem dentro do canteiro é tão importante quanto a atitude de não gerar resíduos", comenta Pinto. Por isso, diversas cidades já estudam a criação de centrais de reciclagem de entulho.
"A reciclagem exige aparato técnico que não dá para ter no canteiro", afirma Vahan Agopyan, da Poli-USP, referindo-se a equipamentos de controle da qualidade do entulho processado. As centrais de reciclagem contam com maquinários semelhantes aos de mineradoras, como esteiras rolantes, britadores, peneiras e classificadores de granulometria. Além do processamento, a separação de materiais também é feita nesses locais, facilitando a segregação entre resíduos cimentícios e cerâmicos.
A intenção de centralizar o processamento de entulho em alguns pontos nas cidades é ter volume suficiente para manter a homogeneidade do material. O processo não é complicado. O entulho é separado, britado, lavado, peneirado e classificado de acordo com a granulometria. "Mesmo se houver concretos de origens e composições diferentes, em grande escala é possível considerar o agregado homogêneo", explica Agopyan.
Em obras de grande porte, muitas vezes afastadas de cidades e locais onde poderiam haver usinas de reciclagem, é recomendável a adoção de centrais próprias. "A construção de, por exemplo, uma hidrelétrica, possui tamanho financeiro e espacial que justifica a instalação de uma central de reciclagem própria, com controle da qualidade garantido", diz Mário William Ésper, da ABCP.
O controle da qualidade e as possíveis aplicações do material reciclado ainda esbarram na falta de regulamentação. Os parâmetros adotados no Brasil são, em boa parte, resultados de ensaios e experiências particulares, contando-se com o apoio de normas estrangeiras. Mesmo assim, os resultados obtidos permitem o emprego de material reciclado. "Já foram realizados diversos testes e ensaios para produção de argamassas, constatando-se pleno atendimento à normalização existente", afirma Salomon Levy, do Ibracon. "Mesmo para concreto estrutural é possível a utilização de agregados obtidos a partir da britagem de entulho, desde que se tomem alguns cuidados na dosagem e especificação do concreto. Por exemplo, o módulo de elasticidade do material produzido poderá ser menor do que aquele verificado para concretos convencionais, enquanto poderá haver aumento da relação água/cimento em função da maior absorção de água dos agregados cerâmicos."
Um exemplo citado pelos especialistas entrevistados é o da norma aplicada na Holanda, que prevê que concretos com até 20% de agregado reciclado são considerados normais. Nos testes realizados aqui, os resultados indicam que resíduos cerâmicos propiciam melhor desempenho do concreto em relação à carbonatação, comparativamente com os agregados miúdos convencionais.
Hoje, no Brasil, a aplicação mais comum do entulho reciclado ocorre em sub-bases de pavimentos, de concreto ou asfalto. No entanto, é possível um uso mais abrangente para os materiais. "A possibilidade de emprego do material reciclado vai depender muito da combinação dos elementos químicos presentes no entulho", afirma Ésper. "Atingidas as propriedades especificadas, este a rigor pode ser utilizado em qualquer situação", completa.
O que fazer com cada tipo de entulho
Plásticos
Origem: fiação, tubulações, diversos.
Reciclagem e cuidados: os materiais são encaminhados para indústrias especializadas nesses compostos que, após processar o material, podem recolocá-lo no mercado, inclusive em outras utilizações, como embalagens.
Materiais cimentícios
Origem: argamassas, concretos, blocos para alvenaria.
Reciclagem e cuidados: os materiais são britados e reaproveitados como agregado. Deve-se tomar cuidado para não deixar gesso no entulho, pois compromete o desempenho do material reciclado. Quando finamente dividido, pode ser empregado como material pozolânico. Eventualmente, pode ser misturado com material cerâmico, desde que mantida a homogeneidade. Nesse caso, o desempenho é inferior àquele verificado com o emprego exclusivo de material cimentício.
Madeiras
Origem: fôrmas, escoramentos, sobras da carpintaria ou marcenaria.
Reciclagem e cuidados: as sobras são encaminhadas para indústrias de processamento de madeiras. A reciclagem é dificultada se o material estiver pintado, pois a tinta pode ser tóxica. Em geral, a madeira é empregada para a produção de chapas de madeira aglomerada ou, em casos mais raros, usada na alimentação de fornos.
Materiais cerâmicos
Origem: blocos, telhas, pisos, pastilhas de revestimentos.
Reciclagem e cuidados: os materiais são britados e reaproveitados como agregado não estrutural. Quando finamente dividido, é recomendado como aditivo pozolânico. Eventualmente, pode ser misturado com material cimentício, desde que mantida a homogeneidade. Nesse caso, o desempenho pode melhorar.
Metais
Origem: tubulações, esquadrias, fôrmas, ferramentas.
Reciclagem e cuidados: são encaminhados como sucata para depósitos de ferro-velho ou siderúrgicas. Atualmente, 95% do aço dos vergalhões produzidos no Brasil vêm de reaproveitamento de sucata, oriunda sobretudo de navios antigos.
Outros
Origem: gesso, tecidos, papéis.
Reciclagem e cuidados: podem ser processados nas indústrias especializadas em cada tipo de material. No caso do gesso, deve-se tomar cuidado para não misturar com resíduos cimentícios, pois a mistura expande em contato com a água e prejudica o desempenho do material. No caso de revestimento de gesso em paredes de alvenaria, a proporção de gesso é inferior ao limite de comprometimento. O maior cuidado deve ser tomado com paredes e forros de gesso acartonado.
Destinação regulamentada
Normas técnicas e regulamentos buscam induzir construtoras a reciclar. Primeiro passo é tornar o processo um negócio lucrativo
Tentar atingir pelo bolso. Esse é o caminho usado pelas regulamentações e normas para incentivar a reciclagem de materiais de construção. Para isso, o processo deve ser o mais econômico possível e a destinação irregular de entulho deve receber penalizações mais pesadas. "Só enxergo a viabilidade da reciclagem se virar negócio", afirma Vahan Agopyan, da Poli-USP.
Um ponto fundamental nesse plano é a elaboração de uma "cadeia do entulho", com funções e agentes bem definidos. Assim, o entulho gerado seria retirado em caçambas e encaminhado a centrais de reciclagem, que processariam e redistribuiriam o material. O lucro com a venda do entulho processado seria abatido do custo de remoção da obra. "Um processo dessa forma dá valor ao entulho, como já existe com caixas de papelão e latas de alumínio", compara Mário William Ésper. Em São Paulo, a retirada de entulho custa cerca de 20 reais por metro cúbico. "Com o reaproveitamento e a destinação em locais próximos à obra, o valor pode chegar a dez reais por metro cúbico", calcula Élcio Careli, diretor da Obra Limpa. A diferença seria resultado da economia em frete e em taxas para bota-fora.
O principal meio de concretizar o plano é a resolução que o Conama (Conselho Nacional do Meio Ambiente, ligado ao Ministério do Meio Ambiente) aprovou em 14 de setembro deste ano, com orientação a respeito do destino do entulho, recomendando a reciclagem. Além disso, do ponto de vista da deposição irregular, a resolução cria a co-responsabilidade entre a construtora e a empresa que remover o resíduo, e prevê multas, a serem definidas pelos municípios.
O modelo atual, com resíduos depositados em bota-fora, tende a se tornar custoso. "Os bota-foras estão se esgotando e o transporte do entulho fica muito caro", afirma Agopyan. "Com as multas e a co-responsabilidade, as construtoras não vão querer correr o risco de arcar com entulho mal destinado." U.L.
Números do entulho
- Em média, 65% do entulho dos bota-foras são de origem mineral, 13% é madeira, 8% plásticos e 14% outros materiais;
- Segundo dados da Prefeitura de São Paulo, a cidade gera 144 mil m³ por mês de entulho, mas informações extra-oficiais dão conta de 326 mil m³ mensais;
- O custo projetado do metro cúbico de argamassa com material reciclado é de 36 dólares, enquanto o mesmo volume de argamassa tradicional sai por 62 dólares;
- Entre 20% e 25% do entulho das cidades são gerados por construtoras. O restante é originado em obras de autoconstrução, sobretudo reformas.
Fonte: Revista Téchne